domingo, outubro 29, 2006

Monólogo

A personagem dezenoviana conta:
_ O dia em que ele se matou em mim amanheceu como qualquer outro: não fazia mais sol que o normal, nem frio, nem havia céu nublado ou tempestades; céu azul, sem muito sol. Eu não estava preparada para viver sem ele, mas a vida é assim. De repente, amanhece-se só. E nunca mais ter aquele sorriso. Nunca mais. A morte tem dessas coisas, a morte nos apresenta o nunca mais. E vai-se aprendendo a não ter, a não estar com. Há dias em que dói mais, noutros quase se esquece. O luto é um dos processos mais doídos que se pode enfrentar. Mas ensina o desapego, ensina o descolar-se do outro e deixá-lo viver na lembrança. E que boa coisa é poder lembrar. Ficam os momentos felizes, leves, porque a raiva passa depois que se parte. E ficou o sorriso, como algo indelével, pleno, como luz da manhã. Ficaram levezas. Mas até chegar a isso, despertei sentindo os ombros pesados, os braços que se recusavam a fazer qualquer coisa, a boca que não queria comer. Por muitas semanas, faltaram as ganas para sorrir, respirar, ser. Eu era o que ele era comigo. E tive que aprender a ser sozinha de novo, a encontrar os sonhos que me moviam, a ver alegria nas coisas. O dia em que ele se matou em mim foi o pior dia da minha vida. Mas dias melhores hão de vir.

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Lembro que senti muita raiva de ele não estar mais ali, quis ofender os deuses, atirar pedras na janela da sua casa, destruir suas cartas e fotografias com fogo. Alguém me impediu. Segurou-me as mãos, fez-me encostar a cabeça no seu ombro e disse "chora, chora, vai passar". Eu era uma alma ferida, como pôde se matar assim? A sensação era de ser preterida. A sensação era de dor. Doía a alma, doía a pele abandonada. A pele para sempre deixada para trás pelos teus dedos. Por que matar-se assim? Foi a pergunta que me fiz em noites que pareceram intermináveis e infinitas. Senti raiva do seu abandono. Se pudesse, teria rogado mil pragas venenosas... mas como rogar pragas a um morto?... Inútil, inútil. Hoje dói bem menos, mas a lembrança ainda te traz em vida, e sinto tua respiração e teu riso. Mas há de passar. Como o vento que sopra lá fora, e a noite que se tornará dia logo mais...

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