
É o mesmo título do poema de Drummond, mas não se trata de poesia. Um vestido e sua simbologia: o ícone da feminilidade na Moda ganha status ameaçador. Como pode uma simples peça do vestuário feminino desencadear tamanha fúria entre seres humanos civilizados, supostamente detentores de saberes tidos como superiores, e já adultos? Pois foi o que aconteceu no interior de São Paulo.
Mesmo depois de conhecer a Psicanálise, Woodstock e sua liberação sexual, e todas as transformações que viveu o mundo ao longo do século XX, o ser humano ainda não foi capaz de mudar sua relação com o corpo. Está claro que os avanços tecnológicos e científicos não desencadeiam transformações culturais simultâneas a si, ao contrário: os códigos culturais não obedecem o ritmo da técnica e da ciência; caminham no seu próprio ritmo simbólico e constroem relações que se instalam nos subterrâneos dos seres humanos, em lugares governados pelos princípios coletivos traduzidos em códigos sociais, moral, valores, etc.
Mas uma pergunta me persegue: por que um vestido foi capaz de causar reações tão hostis? O que existe de condenável nesse vestido? A cor? O comprimento? A aderência ao corpo? O que existe de condenável em um corpo? E o que existe de condenável em um corpo coberto por um vestido curto?
A ironia sobre o termo civilizado utilizado no começo do texto é óbvia. Creio que nunca chegamos a ser totalmente civilizados e, decididamente, caminhamos em direção à barbárie. Quando me deparo com reações coletivas como a ocorrida na UNIBAN, vejo reações bárbaras se estampando.
A hostilidade dos estudantes era claramente uma violência de gênero, associada ao falso moralismo que apregoa que o comportamento feminino considerado “decente” seria uma moça coberta até os pés, assexuada e opaca. Mas essa mensagem é confusa, pois a sociedade vê veiculado na mídia que a sensualidade é um bem simbólico a ser conquistado por mulheres de todas as idades e meios, e que o corpo é a maneira de alguém estar presente no mundo e conquistar um lugar ao sol. A ideia da beleza e da sensualidade está associada ao sucesso.
Ouvi e li opiniões de gente que, como eu, tentou entender a reação agressiva e descabida do coletivo universitário da UNIBAN. Uma psicanalista entrevistada na Rede Record (perdoe-me a ausência do seu nome, não me lembro!) falou sobre o ocorrido ter sido uma “histeria de massas”. Eu considero que isso seria um risco, pois a histeria no meio social pode levar a extremos muito perigosos, como o linchamento e o massacre. De alguma maneira, esse massacre aconteceu; embora tenha sido verbal, ele foi veemente. Uma jornalista que escreve no site do Observatório da Imprensa (peço igualmente perdão pela ausência do seu nome, pois não salvei o artigo para postar o link aqui), fala da necessidade de se entender a reação dessa moçada.
Li muitas opiniões de populares postadas na Internet sobre o caso em resposta ao vídeo de uma reportagem televisiva. A violência da turma da UNIBAN gerou outras reações violentas que também merecem nossa reflexão sobre a sociedade e nossa juventude. Muitas pessoas referiam-se aos jovens universitários como “gays” (outro tipo de violência de gênero, associada à ideia de que usar a palavra gay seria insultar e desmoralizar os que atacaram e constrangeram a moça em questão), “pobres” (que reflete o ódio de classe, uma maneira de hierarquizar quem estuda na UNIBAN e em outras instituições, em relação ao seu nível sócio-econômico), o reforço à postura machista que rotulou a moça do vestido curto como “vagabunda” (palavras dos que escreveram na postagem). Essas reações revelam a avalanche de preconceitos que estão presentes em nossa sociedade. Claro que também houve posturas diferentes, opiniões que diziam que faltava cidadania, senso crítico e solidariedade em relação a todo o caso.
Não me interessa discutir a intenção da moça ao usar tal peça de roupa, o que me interessa é entender a resposta que o grupo lhe apresentou. Que incômodo foi esse o gerado pelo vestido? O corpo ainda precisa ser coberto pelos véus, sobretudo o corpo feminino? O vestido não protege, mas aprisiona. O vestido é a caixa, a mordaça. O vestido é o cinto de castidade. Ele é a mensagem do que não pode ser tocado. Se aparece descoberto, então o corpo está aberto à violação? Se ele se mostra, é público e está aberto à visitação??...
Entre o jogo do olhar e do esconder, constroi-se o comportamento social de quem está ao redor do corpo em questão, mas o que vemos é que os violadores e sociopatas não precisam de mensagens visuais “insinuantes” para o seu comportamento doentio e sua violência. E o que pensar de um grupo que apresenta um comportamento como o desses enfermos estando dentro de uma instituição de ensino superior? O que está falhando na nossa sociedade?
Temos muitas questões para discutir. Temos muita civilização para conquistar. Porque a barbárie está a um passo daqui, talvez seja preciso apenas adentrar o edifício de alguma universidade brasileira.
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