domingo, setembro 03, 2006

Homenagem a uma flor





A flor


Maria Rosa nasceu na quase primavera do setembro de 1910. Era o quinto dia do mês, talvez fizesse muito frio, não se sabe ao certo. Naquele tempo as pessoas não se preocupavam muito com boletins metereológicos. Cresceu numa família de poucos irmãos, de mãe chamada Ana Rosa e pai, Felicíssimo. Como não ser feliz numa família assim? Penso numa linhagem matriarcal, onde as mulheres perpetuavam-se através dos seus nomes.

Em algum ano das décadas seguintes, quando ainda viviam num modesto meio rural, chegou ao país, desembarcada dos navios europeus e talvez suando no lombo dos burros, a peste bubônica. Contava Maria Rosa que o único médico da região, um tal dr. Régis Pacheco, colocava compressas quentes e pomadas sobre as feias feridas e, assim, dava algum consolo aos doentes. Parece-me que ela perdeu um dos seus irmãos por conta dessa enfermidade, mas não estou muito certa disso.

Quando era jovem, admirava os militares uniformizados e de peito largo - segundo ela mesma me confessou anos depois, quando já era viúva -, apaixonando-se, ainda menina, pelo jovem Miguel, o qual, recém-chegado do serviço militar na capital, trazia algum resquício de credencial de sargento do exército. Imagino que usasse farda quando chegou, o que era capaz de causar alvoroço entre as moças em idade de casar.

Miguel tinha nome de anjo e ela, de flor. Casaram-se e tiveram muitos rebentos. A vida na cidade não foi generosa com eles; Miguel vendia leite de porta em porta para dar de comer às treze bocas que viviam sob o teto humilde, sendo uma delas a filha de um dos irmãos de sua esposa.

Maria Rosa foi uma das pessoas mais tristes que conheci. Quando criança, cheguei a pensar que fora a precoce viuvez. Ficou viúva aos 54 anos, idade em que muitas mulheres ainda davam à luz naqueles tempos precários. Não sei por quê não se casou novamente. Talvez amasse profundamente seu eterno militar, o amasse num silêncio triste e opressor. Um amor ceifado pelo tempo, um amor obrigado a sufocar-se sob as roupas escuras que levou até, mais ou menos, os 75 anos.

Herdei dela o queixo e uma certa tristeza que se dissimula sob minha expansividade. Herdei talvez um gosto pelas fardas verdes e os quepes discretamente caídos sobre a testa. Herdamos dos nossos antepassados mais que características físicas. Ao meu modo, também já encontrei meu anjo.

Maria Rosa viveu exatos 89 anos. Foi forte, aglutinou, durante sua vida, os filhos ao redor de si, ainda que com reservas claras de uns com os outros. No seu leito de morte perguntava por mim, se ía bem, se já havia ficado noiva, se estava estudando direitinho. Tinha uma obsessão por ver casadas as netas, como se o casamento pudesse lhe dar descanso melhor.

Morreu numa primavera, fechado um ciclo bonito de vida, voltou a ser o húmus que lhe deu o sopro da existência. Quem sabe não é ela cada flor que vejo nos jardins por onde passo, quem sabe não virou uma estrelinha que me olha das noites de lua e de solidão?...

Maria Rosa, tiveste em teu nome a beleza que semeaste em meu coração. A primavera inteira te celebra, minha flor. Faz um ano que partiste. Recebe minha saudade que me toma à cada dia desta terra às vezes insalubre, às vezes árida. Recebe meu amor de semente tua, como confirmação da benção que foste.

Fabiana Brandão, 17 de outubro.

Primavera de 2000.

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