Participei de dois concursos literários com ele (Radio France International - França, pelo Prêmio Guimarães Rosa, e o Concurso Internacional Newton Paiva - 2005) e sei que falta-lhe algo para que seja considerado digno de lauréis. Gosto desse conto. Ele foi reflexo de um momento importante do meu crescimento pessoal e da minha caminhada como escritora. Não tenho ganas de enviá-lo a nenhum concurso mais, por isso mesmo eu o publico aqui. Quero que seja lido, que venha à luz. Minha amiga Isadora sempre me disse que não se deve guardar literatura na gaveta. E ela está certíssima. Isa sabe das coisas.
Boa leitura a todos e todas. Um beijinho, Fabiana.
A terceira noite
"Eu fico com essa dor, ou essa dor tem que morrer..."
Luís Melodia
Chegou cansada e apreensiva. Eram nove horas da manhã e desceu do táxi sentindo frio, ainda que fosse princípio de outono e fizesse sol. Estava diante do nº 400 da avenida Albert Einstein. Ela não fazia idéia do que a esperava durante os dias que passaria ali. Mas viera. Estavam separados havia meses, haviam sofrido modificações em seus comportamentos, um ali longe do outro, morrendo de tédio e de ciúme, como em canções tocadas nas rádios. As histórias de separação são sempre tristes, embora os desencontros sejam o outro lado do amor. Aquele homem havia sido amado por ela até o limite do que não se pode compreender, até o indizível que preenche as cartas de amor bêbadas de sono e madrugada.
Ela ignorava a geografia do corpo tão amado outrora... A verdade é que ele tornara-se um estranho para ela, desses estranhos que mal olhamos nas calçadas e de quem já queremos desviar rapidamente os olhos. Ou porque nos causam incômodo, ou porque nos excitam a tal ponto que é impossível fitá-los repetidamente. Ele agora era um território estrangeiro, território que já lhe havia pertencido, é certo, e que havia tocado, percorrido com pés ansiosos; lugar onde havia fincado marcos e fronteiras com o mundo, encontro de duas almas sedentas por possuírem-se. Difícil saber o momento exato em que as fronteiras se fundem. Os corpos se achegam, as respirações se aceleram, calor, suor, ternura, tesão! Explodem. As fronteiras são dinamitadas e as almas se tocam. Um não sabe onde começa ou termina seu desejo, pois esse desejo é a pessoa que está ali, compartilhando cada momento. A geografia do corpo amado se torna cada vez mais amiga. Conhecer cada milímetro, saber onde encontrar o prazer do outro, tudo isso começa a denotar que as relações se estreitam mais e mais entre as almas. Os corpos já caminham sem medo de perder-se, conhecem caminhos poéticos onde encontrar o outro, onde há o limite entre mundos e desejos. Os corpos se mostram amigos quando se conhecem os cheiros e a às vezes hostilidade de certos trechos.
Ele estava diante do portão. Os seus olhos se cruzaram com os dela, desviaram-se com incômodo, ele olhou a sacola que ela levava sobre o ombro, ela olhou o fim da rua. Tudo ocorreu em questão de poucos segundos, mas pareceu durar exatos cem anos dolorosos. Os olhos se cruzaram de novo, ele lhe sorriu desajeitadamente dessa vez, e ela se perguntou "o quê estou mesmo fazendo aqui?". Foi tomada por um frio imenso na barriga, mas avançou em direção a ele, em direção ao seu caos particular e intransferível, a bolsa de viagem era a única cúmplice do seu gesto desmedido. Estava ali. Havia passado sobre todos os seus medos e incertezas para chegar até aquele homem, para voltar a ele. Então, teve o segundo e mais cruel pensamento: "Agora não há mais volta. Tenho que ter coragem". Ele deu um passo à frente e a abraçou
Não trocaram nenhuma palavra enquanto ele abria as portas e janelas, como muitos desconhecidos costumam fazer, e apenas o essencial foi dito entre o banho que ela tomou (ficou bonita, sentiu-se perfumada e forte!) e a sala, onde um filme francês era exibido na tevê. Havia ali um cheiro de poeira e de tristeza. A primeira coisa que ela sentiu foi a poeira; cheiro de lugar desabitado, sem cuidados e sem limpeza regular. Imaginou-o vivendo sozinho e deprimido, sem cuidados consigo mesmo, sem vontade de fazer qualquer coisa que não fosse beber e dormir. Depois veio a tristeza, uma tristeza capaz de dilacerá-la por dentro, de fazê-la chorar aos gritos, como uma personagem de um poema de Neruda.
Ele estava sentado no sofá negro que havia na sala, não sabiam ao certo o que dizer; ele abriu espaço ao seu lado para que ela também se sentasse, havia tanto tempo!... O filme se desenrolava na tevê, a luz entrava, opaca e vulnerável, pela cortina vazada. Era princípio de outono e o som dos carros ao longe dava a tudo um ar de irrealidade, como a sensação que se tem durante os momentos de déjà vu, quando tudo parece se desenrolar vagarosamente. Ele então tocou seu corpo com muita determinação, as mãos dele eram estranhas, doíam. O corpo junto ao dela era outro, não era mais o corpo amado, por isso ela não sabia como tocá-lo e não o fez. Apenas beijou a boca que encostou-se à sua, como se elas nunca se houvessem separado um dia. Mas percebeu que o beijo era amargo, trazia a impressão de que tudo era um desfecho à história dos dois. Seu corpo doía inteiro sob o peso do dele, o silêncio impunha temores, o filme acabava na televisão e começava um filme italiano, provavelmente era uma mostra de cinema europeu.
Fizeram amor no sofá estreito, sem nem ao menos tirarem as roupas, o que aumentou o seu desconforto. Depois de tudo, ela se deu conta de que faltara algo e correu até o banheiro. Amor. Eis o que faltara. Envolvimento verdadeiro, cumplicidade, afeto. Chorou como criança pensando que não deveria ter ido até ali, que fora um erro insistir naquele romance, que a história dos dias foi bonita e especial num passado que já não existia. Tomou novamente um banho com a esperança de que lavasse o vazio que sentia, a água em seus cuidados minerais, capaz de curar tantos males, mas nada adiantou: não apagou o passado, cuja nostalgia a escravizava, ou o presente inóspito de há cinco minutos. Haviam feito amor como autômatos; melhor: aquilo foi o mais puro sexo.
Quando voltou à sala ele tomava uísque, rindo do filme italiano. "Vem, senta aqui", pediu ele. Ela se sentia uma garota de programas recebendo um gesto de carinho do seu cliente. Sentia-se péssima, pensou em tomar o primeiro ônibus, sair dali e esquecer aquele dia, voltando à sua vida vazia, bem longe dele. Talvez não pudesse mais amá-lo. Seu corpo agora era outro, as fronteiras se haviam redefinido, a voz soava áspera, arranhava sua pele a barba por fazer. Ela sabia que só se é capaz de amar alguém quando se é capaz de recordar cada pedaço do corpo e da pele amados, quando a geografia do outro é o espaço sem fronteiras políticas ou geográficas.
Fizeram amor outras vezes durante os dois dias seguintes, nos quais ela recusou-se a encarar a realidade dos fatos: já estavam separados de verdade, não era apenas o físico - suas almas haviam se desencontrado. Algumas vezes ela quis conversar sobre o que estava acontecendo, ele se recusou, fugiu dos olhos, das mãos, das palavras dela. Mesmo assim, faltava-lhe coragem para ir embora e deixar aquela sala para trás. Ela foi ficando, talvez a esperança de que se refizessem os laços entre os dois fosse maior que a dignidade que descia pelo ralo do banheiro. Ela se sentia invasora do espaço dele, não se comunicavam mais como antes.
Na manhã do terceiro dia falaram. Sentados no mesmo sofá negro, eram seis da tarde, começava a soprar um frio já de inverno e, dessa vez, só havia o cheiro da tristeza. Ele não tentou tocá-la. Parecia que o escrúpulo - ou talvez uma dose repentina de pudor - houvesse tomado de súbito o seu coração, suas mãos estavam cruzadas e ele evitava olhá-la. Ela o olhava fixamente dentro dos olhos castanhos, "Você ainda me quer?", perguntou ela num fio de voz, sentindo o medo grandioso que acompanha os desfechos das histórias de todos os amantes. E, então, sentiu a lâmina gelada da foice da morte sobre as asas do seu sentimento. "Não sei", disse ele, olhando as próprias mãos. "Às vezes te quero, mas não sei o que fazer com esse querer."
Quando deu por si, ela estava implorando o amor alheio, amor que havia deixado de ser seu, ou que talvez jamais houvesse sido. "Deixa eu te amar. Diz que eu posso, que podemos... Diz que me dá teu amor...". Às vezes uma buzina lá fora, na rua, e a realidade que parecia sonho, dentro da sala. "Não sei... Tenho medo que tudo seja igual a antes..."
"E o que eu faço com meu amor?...", ela perguntava como que a si mesma.
"Não sei...", foi a última coisa que ele lhe disse.
Não sabia o que seria agora da sua vida sem tê-lo, sem contar com o seu amor, com a sua presença nos seus dias. Nela, tudo era dor física. Ainda assim refez a sacola de viagem e chegou até a rodoviária sem lágrimas. Ía com a morte n'alma, como a mais forte dos românticos. Não chorou dessa vez, não poderia fazê-lo, pois precisava aprender como lidar com aquela decepção, era algo novo, como todas as separações o são. Pediu a ele que não a acompanhasse, não suportaria os seus olhos olhando-a longa e tristemente entre os ônibus e bagagens. Eles se separaram sem dizer palavra alguma, sem gestos, abraços, ou olhares. Ele foi para o quarto e a deixou entrar no táxi. Aquela seria a última vez que se falariam.
Depois da longa viagem, sua cidade estava ali. Encontrou luzes ainda e foi para casa a pé. O centro da cidade estava vazio, era madrugada ainda, não sabia que era muito perigoso uma mulher sozinha assim?!... A duas quadras de sua casa foi abordada por um jovem de uns dezessete anos, drogado, inseguro. Encostou-a contra a parede de um edifício, com uma faca na mão.
"Me dá a bolsa, anda!"
Ela o olhava sem dizer nada, estava sem forças para pensar em qualquer coisa. Ele repetiu a frase umas três vezes mais, ela o olhava sem vê-lo. Ele começou a gritar: "Vamos, sua cadela, vaca, passa a grana, porra!". As palavras pareceram devolver-lhe de volta à realidade que precisava enfrentar a partir daquele momento. Ela encostou-se mais à parede e começou a chorar. O sofá, o filme francês, as mãos do homem que amava, a rodoviária triste, a vida inteira com o cara acabada agora, tudo passava pela sua mente como um filme frenético... O rapaz ficou enfurecido. Enfiou a faca em seu abdômen três ou quatro vezes. Ela resistiu de pé durante alguns segundos e caiu, então, na calçada escura e suja, enquanto o jovem fugia com suas roupas e sua bolsa...
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