
Até que ponto devemos aceitar as regras que nos são impostas, sobretudo quando elas são mecanismos de vigilância ao estilo foucaultiano do "vigiar e punir"? Refiro-me ao meu lar, infelizmente. Moro num condomínio que é ícone do modernismo brasileiro e adorado pelos arquitetos de todo o mundo e por todos os que apreciam a boa arquitetura. Esse ícone do modernismo é um paradoxo, cuja convenção interna está pautada no moralismo obsoleto de algum século findo.
Foucault foi quem melhor definiu, classificou e analisou os mecanismos de vigilância criados pela sociedade para observar e enquadrar a sexualidade humana. As práticas dessa vigilância são várias e acompanham a intimidade dos indivíduos com lentes de aumento. Não bastassem as que aponta Foucault, deparei-me com uma nova: a convenção interna do condomínio onde resido.
Entre as regras que são elencadas nesse documento, está a "declaração de convivência marital" (sim, é isso mesmo que você está lendo), cujo sentido existencial está determinado pela tentativa de "moralização do condomínio", segundo me foi informado por funcionários da administração. A declaração marital é uma exigência para os casais que decidam viver no condomínio, devendo ser assinada pelo casal diante da ausência da certidão de casamento. Sim, deve-se apresentar certidão de casamento se vier morar aqui; se não for casado diante da Lei, que se assine a tal "declaração de convivência marital". Tudo isso é exigido para que os moradores em questão tenham livre acesso ao edifício, a qualquer hora do dia ou da noite, sem necessidade de apresentar documentação.
Eu já brinquei, em outra postagem aqui no Torre de capim lilás, na qual comparei meu edifício ao 1984, de George Orwell. Não é exagerada a analogia. A "declaração de convivência marital" é como uma câmera sem lentes, que vigia a sexualidade alheia, e observa, do seu posto estático e cego, com quem cada morador dorme. Como na obra de Orwell, os abraços e as carícias dos moradores são vigiados vinte e quatro horas diárias. Também aqui, não é permitido acariciar o outro sem o consentimento do Grande Irmão. Estaria o amor - além do sexo - sendo censurado?
Queria lembrar um princípio constitucional que é desrespeitado com essa exigência, o qual afirma que o "lar é asilo inviolável". Tenho desrespeitada minha intimidade, meus direitos como cidadã de ter privacidade em minha própria casa, ao ter que dar esclarecimentos sobre minha vida íntima a pessoas que não conheço e às quais não teria que participar nada. Vejo, nessa prática, uma arbitrariedade que se justifica em nome da "moralização" do condomínio, uma prática que revela que a administração do condomínio se excede em suas atribuições enquanto administradores e síndica, e cria, à revelia da constituição brasileira, leis próprias muito invasivas.
Por isso mesmo fiz, na postagem que havia escrito antes, a analogia do meu condomínio com um país: o controle de migração ("vistos de turistas" para as visitas que se hospedam comigo; "visto permanente" para os que vêm morar aqui); a imprensa a serviço do governo (sim, o condomínio publica mensalmente seu órgão de imprensa, a serviço dos interesses do governo local, un jornaleco...); a constituição própria (dispensa mais apresentações); a guarda pública (e é sempre tão mal-preparada, meu Deus!!...); o parlamento (que sempre vota segundo os interesses governistas, e passa o rodo na oposição); o circo (festas temáticas em algumas épocas do ano); e, claro, a Déspota esclarecida.
O que aconteceu, e que me causa profunda vergonha, é que decidi assinar a tal declaração de convivência marital. Meu amado chega em poucos dias e hoje foi a segunda vez que fui à administração para inclui-lo como morador. Da primeira vez, me recusei a assinar a bendita declaração, o que fez com que eles recusassem a minha solicitação de sua inclusão como morador. Dessa vez fui disposta a assinar a famigerada carta, mas não sem fazer um discurso recheado de argumentos indignados, como cidadã, como militante feminista, como leitora de Foucault e de Marx, como pessoa livre. Hoje, com certeza, os que trabalham naquele lugar refletirão sobre suas práticas, e saberão que alguns dos que vivem aqui se indignam com suas práticas.
O que posso dizer mais? É surreal ter que passar por tudo isso para viver num edifício. Meu namorado brinca, dizendo que o meu edifício é o único no mundo que pede passaporte, e ele está certo. Trata-se de um espaço que a ficção teria inventado, se ele já não existisse. Ou que pode ter sido inventado por ela, num desses gestos em que "a vida imita a arte".
Foucault foi quem melhor definiu, classificou e analisou os mecanismos de vigilância criados pela sociedade para observar e enquadrar a sexualidade humana. As práticas dessa vigilância são várias e acompanham a intimidade dos indivíduos com lentes de aumento. Não bastassem as que aponta Foucault, deparei-me com uma nova: a convenção interna do condomínio onde resido.
Entre as regras que são elencadas nesse documento, está a "declaração de convivência marital" (sim, é isso mesmo que você está lendo), cujo sentido existencial está determinado pela tentativa de "moralização do condomínio", segundo me foi informado por funcionários da administração. A declaração marital é uma exigência para os casais que decidam viver no condomínio, devendo ser assinada pelo casal diante da ausência da certidão de casamento. Sim, deve-se apresentar certidão de casamento se vier morar aqui; se não for casado diante da Lei, que se assine a tal "declaração de convivência marital". Tudo isso é exigido para que os moradores em questão tenham livre acesso ao edifício, a qualquer hora do dia ou da noite, sem necessidade de apresentar documentação.
Eu já brinquei, em outra postagem aqui no Torre de capim lilás, na qual comparei meu edifício ao 1984, de George Orwell. Não é exagerada a analogia. A "declaração de convivência marital" é como uma câmera sem lentes, que vigia a sexualidade alheia, e observa, do seu posto estático e cego, com quem cada morador dorme. Como na obra de Orwell, os abraços e as carícias dos moradores são vigiados vinte e quatro horas diárias. Também aqui, não é permitido acariciar o outro sem o consentimento do Grande Irmão. Estaria o amor - além do sexo - sendo censurado?
Queria lembrar um princípio constitucional que é desrespeitado com essa exigência, o qual afirma que o "lar é asilo inviolável". Tenho desrespeitada minha intimidade, meus direitos como cidadã de ter privacidade em minha própria casa, ao ter que dar esclarecimentos sobre minha vida íntima a pessoas que não conheço e às quais não teria que participar nada. Vejo, nessa prática, uma arbitrariedade que se justifica em nome da "moralização" do condomínio, uma prática que revela que a administração do condomínio se excede em suas atribuições enquanto administradores e síndica, e cria, à revelia da constituição brasileira, leis próprias muito invasivas.
Por isso mesmo fiz, na postagem que havia escrito antes, a analogia do meu condomínio com um país: o controle de migração ("vistos de turistas" para as visitas que se hospedam comigo; "visto permanente" para os que vêm morar aqui); a imprensa a serviço do governo (sim, o condomínio publica mensalmente seu órgão de imprensa, a serviço dos interesses do governo local, un jornaleco...); a constituição própria (dispensa mais apresentações); a guarda pública (e é sempre tão mal-preparada, meu Deus!!...); o parlamento (que sempre vota segundo os interesses governistas, e passa o rodo na oposição); o circo (festas temáticas em algumas épocas do ano); e, claro, a Déspota esclarecida.
O que aconteceu, e que me causa profunda vergonha, é que decidi assinar a tal declaração de convivência marital. Meu amado chega em poucos dias e hoje foi a segunda vez que fui à administração para inclui-lo como morador. Da primeira vez, me recusei a assinar a bendita declaração, o que fez com que eles recusassem a minha solicitação de sua inclusão como morador. Dessa vez fui disposta a assinar a famigerada carta, mas não sem fazer um discurso recheado de argumentos indignados, como cidadã, como militante feminista, como leitora de Foucault e de Marx, como pessoa livre. Hoje, com certeza, os que trabalham naquele lugar refletirão sobre suas práticas, e saberão que alguns dos que vivem aqui se indignam com suas práticas.
O que posso dizer mais? É surreal ter que passar por tudo isso para viver num edifício. Meu namorado brinca, dizendo que o meu edifício é o único no mundo que pede passaporte, e ele está certo. Trata-se de um espaço que a ficção teria inventado, se ele já não existisse. Ou que pode ter sido inventado por ela, num desses gestos em que "a vida imita a arte".
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