quinta-feira, novembro 19, 2009

Privacidade

Imagem tirada daqui.

O tema privacidade tem sido debatido, escarafunchado e dissecado neste blog nos últimos vinte e quatro meses, pelo menos. Antes de mim, este tema foi discutido por muita gente boa, especialmente por um sujeito que me fascina e cujos textos são deliciosos: Paul Virilio. Foi através da leitura de um de seus textos que me veio a discussão sobre as câmeras de vigilância, esse olho que nos acompanha no mundo contemporâneo. Filósofo e urbanista, o olhar e a pena inquietos de Virilio analisam a sociedade da informação, a velocidade, a mudança dos paradigmas do mundo moderno, como a confusão que se funda entre a realidade e a virtualidade. Ainda estudante de graduação, li o meu primeiro texto de Virilio: "A luz indireta". É um autor imperdível para entender o mundo atual e a maneira como as relações simbólicas modificam e interferem em nossa vida.

Vim falar de privacidade. Citei Virilio porque me lembrei da discussão que ele faz sobre as câmeras. Se não me engano, a legislação brasileira exige que, se um edifício ou outro espaço usam câmeras de vigilância, eles têm por obrigação notificar as pessoas que circulam pelo lugar sobre a existências daquelas, e por isso vemos plaquinhas simpáticas em que se lê "sorria, você está sendo filmado". As câmeras nos vigiam nos corredores, escadas, halls, elevadores. Escondem-se detras dos espelhos, nas arestas de salas, nos postes e no alto dos edifícios. Mas você já parou pra pensar que outros mecanismos de vigilância também estão em vigor hoje em dia?

Eu ainda não entendo a real dimensão dos satélites, mas me assusta o Google Maps e me assustou ainda mais descobrir o Google Street View, e as ruas aparecendo claras, com seus edifícios, os números desses, os carros, ainda que sejam imagens estáticas, fotografias tomadas há algum tempo. Mas, e quando nos apresentarem imagens em tempo real e que não sejam estáticas? Até que ponto será exposta a nossa intimidade na rede mundial de computadores?

No filme "Rede de mentiras" (Body of lies), de Ridley Scott, o uso de satélites para rastrear as operações de agentes da CIA em territórios do Oriente Médio é como uma imensa câmera que se aproxima e se afasta para ver os detalhes do rosto dos visitantes do nosso condomínio. Não sei até que ponto órgãos como a CIA já fazem uso desse tipo de tecnologia fora de solo norteamericano, mas me parece fascinante e aterrorizante que os mecanismos de vigilância tenham evoluído a tal ponto.

Imagino que a ficção pode e deve se beneficiar das loucuras que já antigiram a técnica e, com isso, construir as suas narrativas. Em outras épocas, os textos literários escritos com tais elementos teriam sabor surrealista ou futurista, e pareceriam impossíveis, não há muito tempo. Imagine um imigrante ilegal que se esconde num edifício com má calefação num subúrbio de Paris. Ele consegue um emprego mal pago de ajudante de cozinha num restaurante na rue Saint Honoré e viaja de metrô por várias estações para ir trabalhar, e outra vez até chegar em casa, no fim do dia. Faz o mesmo trajeto diariamente, encontra as mesmas pessoas nas estações onde toma o metrô e onde desembarca, os mesmos imigrantes mal pagos e explorados pela língua e pela moeda francesas. Ele não sabe, mas diariamente a Polícia de Imigração o vigia pelas câmeras do metrô, e pelas câmeras dos postes, e inclusive pelas câmeras instaladas no edifício em frente ao restaurante onde trabalha. As câmeras sabem tudo dele. Elas o observam, como animais predadores que esperam o momento exato para o ataque. Fica difícil se esconder. Ele pensa que está a salvo, incógnito, camuflado em meio à multidão parisiense que transita pelas estações lotadas até chegar a Villiers-le-Bel, no norte da cidade, à noite. Numa manhã, antes de sair para o trabalho, enquanto toma café com a esposa também imigrante, vê o seu rosto na tevê e seu nome escrito embaixo. Tenta fugir, mas quando se dirige ao quarto para fazer as malas, a Polícia de Imigração invade a sua sala e o leva embora. Ele não sabia, mas as câmeras o acompanhavam desde o dia 13 de junho de três anos antes, quando desembarcou no Charles De Gaulle, com pouca bagagem para não despertar suspeitas, e bem arrumado, mas com discrição. Elas o observaram por três anos, silenciosas e pacientes, como inimigos que esperam o momento de fraqueza ou distração para realizar o ataque certeiro.

Quando começará o ataque? Quando começará a paranoia?



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